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Confusão ocorreu por volta de 1h30min da madrugada de segunda-feira, 8.(Foto: Reprodução/ Twitter)

Por Crisneive Silveira

Uma briga entre duas jovens em hamburgueria de Fortaleza, no último domingo (7), tomou conta das redes sociais e, em seguida, de veículos de comunicação cearenses e até do Brasil. Mas, para além dos memes, das chacotas e da exposição, existe um limite entre notícia e invasão da privacidade das pessoas envolvidas.

É o que defende Kamila Fernandes, professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre em Sociologia pela instituição e doutoranda em estudos de Comunicação na Universidade do Minho, em Portugal. Em entrevista ao Tribuna do Ceará, a jornalista trata sobre o que é notícia, o que é brincadeira (a conhecida zoeira dos dias de hoje) e como a internet deturpa e transforma uma situação séria em piada.

“Um caso desses, que toma grandes proporções nas redes sociais, acaba tendo esse conceito de viralizar, que não concordo muito. Ele se torna extremamente compartilhado, comentado, perde-se o controle do conteúdo, além de tratar as pessoas envolvidas como se fossem personagens de ficção. Sai do limite do que seria humanamente aceitável. É desrespeitoso, preconceituoso, machista, o que tem sido comum nas redes sociais. O emocional se sobrepõe ao racional, isso tem sido uma característica”, defende Kamila.

Para a professora, a privacidade de cada um se esvai quando o público dá vazão a fatos da vida alheia como a discussão entre as jovens, ocorrida no Porpino. Com a tecnologia, as redes sociais e todo o poder de compartilhamento, fica difícil “escapar” de ter a vida compartilhada, se essa for a escolha de quem registra e de quem contribui na divulgação.

“Essa questão do público e do privado é algo relevante porque pode afetar qualquer um de nós. E as pessoas têm o direito de não serem expostas. No meu caso, sendo funcionária pública, numa situação que tem repercussão pública, aí a escolha não existe. Mas num caso desses, vejo que essas pessoas teriam sim que decidir se deveriam ser expostas, ter essa chance. As redes sociais não pensam nisso, mas o jornalismo deveria pensar na hora de colocar nas páginas do jornal, na internet e tudo mais. Quando as pessoas autorizam, ok, mas quando não…”, teoriza.

Papel da mídia

Para além da repercussão gerada pelas próprias pessoas nas redes sociais, a pesquisadora se preocupa como a internet vem pautando a produção da imprensa, de modo que a busca pelo clique imediato e pela audiência fazem com que os veículos deem mais atenção a isso do que a outros conteúdos.

“Um aspecto a se discutir é os meios de comunicação se apropriarem de uma história dessas em busca também de cliques. Isso tem sido recorrente, até uma forma de os jornais dialogarem com as redes e achar que ‘Nossa! Estamos nos atualizando’, num movimento que um autor define como gatewatching, em que não só os jornais têm monopólio da decisão do que é notícia, mas também o público. Esse é um tipo de caso, de evento público, que nasce das pessoas que estão compartilhando e o jornal tenta se apropriar para acompanhar isso”, comenta a professora.

Kamila destaca a responsabilidade dos veículos de comunicação e alerta que, após um caso como esse ter alcançado tanta repercussão, é preciso que as pessoas reflitam sobre o papel do jornalismo.

“Isso não é informar, é só entretenimento irresponsável. Para o jornalismo, é triste. E não deve ser estimulado. Mas dá leitura, dá clique, dá público… Existe uma responsabilidade no Jornalismo que está muito acima dos cliques, que é uma responsabilidade social. Você não vai fechar os olhos para uma situação dessas, mas vai problematizá-la. Vai falar, por exemplo, dessa questão de classe que existe entre jovens, vai tratar do machismo, da forma como as meninas que brigam são tratadas nas redes sociais. Dar voz a elas, a especialistas também”, avalia a professora.

Publicaria ou não?

Como jornalista, Kamila reconhece como abordaria o tema, que ganhou relevância começando pelas redes sociais. Ela diz, porém, que trataria a pauta com outro viés, e lembra como isso pode permitir que os leitores e internautas possam refletir sobre a própria prática.

Eu não vetaria a pauta, mas colocaria limites. Excluir os nomes e não usar como chacota. Até o nome da pessoa virou motivo de riso. Acho isso tão baixo. As pessoas que têm nome e sobrenome estão sendo expostas sem escolha. Isso tem consequência para a vida delas, pros familiares delas… A pauta pode existir de uma forma mais crítica, mais adequada, melhor trabalhada até para que as pessoas que estão fazendo isso nas redes sociais tenham como refletir sobre isso, tenham a chance de fazer autocrítica e corrigir o que estão fazendo”, analisa.

O assunto, certamente, será pauta nas salas de aula dos cursos de Jornalismo, se depender de Kamila. A professora fala que esse é um caso que precisa ser discutido na universidade.

“Isso tem que ser levado para as faculdades, para os cursos de Jornalismo. Sei que, na prática, a correria faz com que esses erros sejam repetidos, e a reprodução é o que dá mais rápido para publicar, consegue ter um efeito prático e etc. Só que o Jornalismo não pode ser baseado só no imediatismo. Tem que ser mais refletido, esse é o ideal. E a universidade é espaço para isso.”

(Tribuna do Ceará)