A imagem do brasileiro José Aldo carregado e ovacionado após manter o cinturão dos pesos-pena com um nocaute sobre o norte-americano Chad Mendes não deixa dúvidas: o MMA se consolidou como um fenômeno. A 142º edição do UFC, realizada no Brasil, lotou a HSBC Arena e criou expectativa para o evento do meio do ano a ser realizado no Pacaembu.

Mas se o sucesso de audiência é inquestionável, as artes marciais mistas ainda estão longe de se tornar uma paixão unanimemente nacional. Isso porque enquanto há um grupo que identifique no excesso de violência e agressividade o principal ingrediente para que o esporte funcione, ainda existe um grupo grande de expectadores que se escandaliza com a modalidade sangrenta.

Se todas as lutas fossem como a de Anderson Silva contra Vitor Belfort — realizada em fevereiro do ano passado —, em que, com apenas um chute, Spider nocauteou o adversário sem derramar uma gota de sangue, talvez o MMA não gerasse tanta discussão. A polêmica surge quando joelhadas, cabeçadas, socos e pontapés são desferidos até o oponente ficar visivelmente machucado ou desmaiar dentro do octógono. Tanto que até mesmo Dana White, presidente do UFC, reconhece que as lutas excessivamente agressivas ainda não são facilmente aceitas pelo público.

A discussão, porém, vai além de avaliar se o público tem ou não condições de acompanhar os cinco rounds. Mais incisivo, o deputado federal José Mentor (PT-SP) é autor de um projeto de lei que proíbe, independentemente do horário, a transmissão de lutas marciais não olímpicas na televisão. Há uma exceção: desde que fossem pouco violentas, tais modalidades teriam de ser autorizadas pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos para entrar na grade horária. O MMA certamente não estaria nessa lista.

Mentor reconhece que é difícil que a proposta — com audiência pública prevista para o mês que vem — seja aprovada. “É uma luta que está sendo muito explorada financeiramente e que tem uma projeção mundial. Mas mais difícil ainda é ficar sem fazer nada”, afirma. A agressividade do MMA, que, segundo o deputado, pode incitar as pessoas a ficarem mais violentas, foi o que motivou a elaboração do projeto. “Proíbem rinhas de canários e de cavalos porque machucam o animal. Como não proíbem a rinha humana? Imagina os danos que isso causa?”, questiona.

A discussão não é exclusiva do Brasil. Desde 1997, competições e demais atividades relacionadas ao MMA são proibidas em Nova York, apesar dos esforços de Dana White em legalizar a prática no estado. Além disso, no fim de 2010, 250 médicos da Associação Médica do Canadá reuniram-se exclusivamente para avaliar o impacto físico da modalidade. A conclusão: o MMA provoca traumas na cabeça e outros tipos de lesões que podem ser refletidos por toda a vida do lutador. O órgão, então, sugeriu o banimento do esporte no país, segundo mercado do UFC no mundo.
Difícil de engolir
White disse, após luta em que Maurício Shogun foi derrotado por Dan Henderson, que o público ainda não estava preparado para assistir a lutas sangrentas. Shogun deixou o octógono com o rosto desfigurado e ensanguentado.

Com um toque de morbidez

De forma geral, os profissionais que trabalham no universo esportivo não se posicionam contra o MMA, mas admitem ter algumas ressalvas. O esporte, em qualquer modalidade, costuma ser aliado a educação: está relacionado à disciplina, ao comprometimento e à regras. E, para Luís Otávio Assumpção, sociólogo com pesquisas ligadas às atividades físicas, é justamente essa imagem que as artes marciais mistas ainda têm dificuldade em transmitir.

“Não precisa dar a impressão de que vai matar o adversário ou fazê-lo sangrar”, comenta. Assumpção é defensor da luta quando técnicas e regras prevalecem sobre uma brutalidade aparentemente descontrolada. “Nesses casos, é degeneração. Quando começa a ter sangue e fraturas, não é esporte, é barbárie”, acrescenta. “Gostar de ver essas cenas é o mesmo que gostar de ver uma guerra. Tem um toque muito grande de morbidez”, compara.

Já o psicólogo esportivo Manoel Rodrigues acredita que o esporte pode incitar reações violentas, principalmente em crianças e adolescentes, quando não há um cuidado do treinador ao preparar os jovens lutadores. “O MMA tem a questão de tornar a pessoa com um poder nas mãos, elas sabem que podem machucar. Tem que ter muita responsabilidade, coisa que crianças não têm ou não estão maduras o suficiente para entender”, defende.

Muitas mortes… no boxe

Um estudo americano levantou a quantidade de mortes no boxe profissional e amador entre os anos de 1732 e de 2007. O resultado causa espanto: em todo o mundo, 1.465 atletas morreram durante os combates, ou em decorrência da luta. O país líder do ranking são os Estados Unidos, com 751 casos. Na tabela, o Brasil não aparece, mas, após 2007, houve ao menos um registro. Em outubro de 2010, o boxeador Jefferson Gonçalo, 39 anos, teve morte cerebral anunciada quatro dias depois de desmaiar durante disputa do quinto round contra o lutador Ismael Bueno.

No MMA, não há levantamentos oficiais de quantos lutadores morreram dentro do octógono, mas registra-se pelo menos três casos famosos. O primeiro conhecido foi em 1998, em um evento na Ucrânia. Em 2007, Sam Vasquez perdeu a vida dias após ser nocauteado em Houston, nos EUA. E o último registro foi em 2010, quando Michael Kirkham foi nocauteado e dado como morto dois dias depois.

Jofre: “Não é esporte”

Quem não conhece bem as duas lutas compara o MMA aos primórdios do boxe. A prática da nobre-arte, por muitos anos, enfrentou a marginalização justamente por causar espanto quanto à violência e à agressividade. Algumas regras para preservar a integridade do lutador foram implementadas, como a obrigatoriedade, entre os amadores, da utilização de uma proteção no rosto; e, há mais de um século, a modalidade é disputada nos Jogos Olímpicos.

Maior boxeador do país, Éder Jofre, aos 75 anos, não esconde sua indignação ao ver uma disputa das artes marciais mistas. “O boxe tem regras duras e específicas, é um esporte justo. O juiz não deixa dar cotoveladas, joelhadas e não espera o lutador ficar desacordado para interferir. Perto disso, o boxe é um amorzinho”, defende, Jofre, em entrevista ao Correio. O supercampeão tem, em seu currículo, 53 nocautes em 83 lutas, todos eles “conquistados apenas com a mão”, como gosta de frisar.

Mesmo por parte de quem levanta a bandeira a favor da luta, que inclusive une o próprio boxe, qualquer semelhança entre as modalidades é criticada. O árbitro brasileiro do UFC Mário Yamasaki foge do assunto, mas lança um desafio. “Essa comparação é feita por pessoas leigas e que nunca foram a um evento de nível. Eu convido qualquer um que critique o MMA para assistir de perto e garanto que, além de ficarem fãs, nunca mais assistirão ao boxe”, alfineta.

Para aliviar os argumentos de Jofre, Luiz Dórea, que já foi treinador de grandes nomes do boxe, como Acelino Popó Freitas, e atualmente treina três lutadores de MMA — Ednaldo Lula, Júnior Cigano e Edilberto Botafogo —, defende que só há violência quando os oponentes não estão preparados. “Existe uma comissão técnica, são efeitos exames médicos. Há toda uma estrutura para definir quem pode entrar no octógono”, diz. Mas não teve jeito: a justificativa não convenceu o pugilista. “Ninguém está preparado para apanhar desse jeito. Ninguém vai me convencer de que essa luta é válida. Para mim, não é esporte, é assassinato”, critica Jofre.

Sinônimo
O termo nobre-arte, sinônimo de boxe, refere-se à boa conduta entre os lutadores. Ele passou a ser aplicado após o surgimento de regras que tornaram o esporte menos violento e mais justo e equilibrado.

Permitido para menores

As luvas mal cabem nas mãozinhas, mas, também conquistadas pelo MMA, as crianças já estão dentro dos octógonos. Em Brasília, há pelo menos duas academias com aulas exclusivas para os pequenos. Logo nas primeiras semanas, eles aprendem movimentos mais complexos — e perigosos —, como o estrangulamento e a chave de braço.
Enquanto um estende as mãos para receber os golpes, o parceiro desfere socos e chutes, função invertida entre os minilutadores durante os 60 minutos de aula, para que todos treinem. Antes de praticarem a parte técnica, o professor e lutador Pedro Galiza investe em brincadeiras e atividades lúdicas, como futebol e amarelinha, para aquecer a molecada. “Aqui é o lugar de liberar energia. Lá fora, eles nem pensam em brigar”, diz.

Mas, o que mais as atrai é mostrar, dentro do octógono, o que aprenderam. “Gosto mesmo da hora do ‘fight’, quando a gente pode lutar e fazer os movimentos”, assume Gabriel de Carvalho, 10 anos. O pai do menino é professor de MMA e de jiu-jítsu. O garoto treina diversas artes marciais desde os 4 anos, mas diz que prefere essa, que mistura as lutas.

A iniciação precoce em um esporte que ainda causa espanto pela brutalidade é alvo de críticas. A psicóloga esportiva Paloma Vaz, que acompanha três lutadores profissionais de MMA, é contra qualquer aproximação infantil com a luta. “Não consigo ver como positivo. No nosso país não tem categoria de base, mas, mesmo assim, vem um esporte com essa carga de agressividade e que ninguém sabe ao certo como vai interferir”, pontua.

A psicóloga, porém, encara a modalidade como um esporte que chegou para ficar e que, portanto, é melhor encará-lo. “É como sexo. Os pais não falam e têm complicadores. Tem que ter orientação e equilíbrio para que a criança tenha um senso social.”

Por sugestão própria, Anuar Elias, 47 anos, matriculou o filho Enzo, de 9, nas aulinhas de MMA. “Ele me pediu para treinar caratê, mas sugeri algo mais moderno”, conta o empresário, que decidiu também praticar a modalidade. Antes de matriculá-lo, porém, Anuar teve uma conversa franca com o pequeno, alertando-o que o esporte pode machucar. E mesmo com a confiança de que não brigará fora da academia, fez restrições: no primeiro caso, ficará proibido de treinar. “É um esporte que dá disciplina, os próprios professores passam isso. Meu filho veio para conhecer os limites dele”, acredita.

Três perguntas para Mário Yamasaki

Por que o MMA assusta?
A modalidade assusta apenas quem não a conhece. O esporte evoluiu e se lapidou para se tornar um dos que mais cresce no mundo. As pessoas podem até fingir que não está acontecendo nenhuma transformação, mas a verdade é que o MMA está aí para ficar.

Como o árbitro pode evitar o excesso de violência?
A função do árbitro é ficar sempre atento para a proteção dos lutadores e para que nada de mais grave aconteça. Por isso, estamos montando a Comissão Atlética de MMA. Queremos unificar as regras não só dentro do octógono, mas no evento como um todo, para assim evitar consequências mais graves.

O MMA pode tornar as pessoas mais violentas?
Não acredito nisso. Como toda arte marcial, o que deixa as pessoas agressivas é o professor, não o aluno.

(PORTAL SUPERESPORTES)