
Por detrás deste contraditório comportamento encontra-se um forte sentimento de culpa herdado do colonialismo. De facto, o Ocidente triturou culturas e povos, cometeu e continua a cometer barbaridades em nome dos seus interesses e visão do mundo. Mas isso não deve levar-nos a confundir o multiculturalismo com cedência à barbárie. Não se pode confundir multiculturalismo com um multimoralismo que relativiza, nos outros, aquilo que para nós é intolerável.
O mau resultado deste multimoralismo está aliás à vista. A abertura do mundo, a acelerada mobilidade de pessoas e mercadorias, as vastas migrações, as crescentes interdependências políticas e económicas, têm gerado um sem número de conflitos que mais do que de natureza cultural ou religiosa são na verdade conflitos de civilização. Multidões de praticantes de modos retrógrados de civilização têm invadido o Ocidente, e a Europa em particular. A situação das mulheres é, neste domínio, particularmente chocante. Mas também o fomento, junto dos jovens, de uma cultura de ódio, racista ou religioso, contra as nossas sociedades democráticas, tolerantes e livres.
Que estes fenómenos alimentem por sua vez, entre nós, os nacionalismos e as ideias fascizantes não deve espantar ninguém. A demissão da esquerda e do liberalismo em geral, a confusão instalada na intelectualidade e na política, abrem caminho ao radicalismo de direita que aos olhos de uma parte crescente da população aparece como única força capaz de fazer frente à subversão dos nossos costumes assentes na liberdade individual. Ao permitirmos a instalação de verdadeiros guetos, onde prolifera muito daquilo que nos levou séculos a combater e superar, estamos a abdicar da nossa própria cultura e a regredir em termos de civilização. Enfim, se os outros têm direito à sua cultura, por maioria de razão nós temos direito à nossa.
Por outro lado, o Ocidente, em nome de uma pretensa liberalização económica, tem sido igualmente cúmplice ao aceitar que muitos países, ditos emergentes, mantenham as suas populações e forças de trabalho numa situação de extrema miséria, com baixíssimos salários, sem nenhuns direitos cívicos ou sindicais. Não se trata só de uma concorrência francamente desleal mas de pactuar com novas formas de servidão e degradação humana. Muito daquilo que hoje consumimos é produto de uma verdadeira escravatura. E isso não pode ser aceite.
O problema é pois real e as suas consequências nefastas. O choque de civilizações existe mesmo e não se resume ao fundamentalismo religioso. Nalguns países, sobretudo no norte da Europa, sucedem-se graves conflitos insanáveis entre comunidades. Chega-se ao ponto de algumas destas comunidades pretenderem ir contra a liberdade de expressão, como foi o caso das caricaturas de Maomé e outros exemplos.
A esquerda liberal não pode continuar a meter a cabeça na areia. É preciso distinguir claramente aquilo que é a tolerância e até o apreço pela diferença e diversidade, daquilo que são manifestações aberrantes, irracionais e opressivas absolutamente intoleráveis.